Miserável.

Confesso que hoje acordei com uma vontade imensa de não escrever. Hoje acordei com lembranças, mas não são lembranças boas, daquelas que você abre um sorriso e melhora o resto da semana. Não mesmo. São lembranças de outras pessoas, outras vidas. É como se eu sentisse a dor dos miseráveis que anseiam por liberdade, ou pelo menos, a dignidade de morrer em paz.
Lembrei-me de um dia, não sei bem a data,
eu ainda estava no colégio, completamente alienado e com uma vontade de gastar meu dinheiro com lixo. Era cedo, talvez umas 7 horas da manhã, caminhava como se as pessoas não existissem e meu mundo fosse, apenas, uma rua vazia. Olhara para os lados, não podia ver muita coisa, meu umbigo seria o mais importante no momento. Eis que surge, no início da esquina, em frente a uma churrascaria, um animal. Pelo menos era o que ele parecia ser. Estava encostado no poste, com roupas sujas, no cabelo, além de sujeira, havia umas coisas estranhas, não consegui identificar. O homem, que mais parecia um animal, revirava o lixo como se a vida dele dependesse daquilo, era a fome que batia na porta, era o instinto de sobrevivência. Revirara o lixo e, de lá, retirara uma coxa de frango e uma salsicha.
Aquela coxa de frango roída, aquela salsicha esverdeada, jamais saíram da minha cabeça. Mal pude olhar aquele pobre homem nos olhos, não tive forças. Choquei pelo resto do dia, da semana, do mês. Não o vi mais. Talvez tenha morrido, ou se camuflado no lixo. Fato é que aquela cena nunca me saiu da memória, de tempos e tempos ela aparece. Me mostra o quão fútil eu sou, e quão imbecil todos nós somos ao ignorar a miséria e a desgraça alheia. Verdade é que a desigualdade não pareceu uma coisa de outro mundo, finalmente pude enxergar a realidade. Pude ver o quão imbecil eu sempre fui, descobri o egoísta que residia em mim. E, mesmo hoje, tempos depois, a cena parece ter sido vista antes do jantar. É estranho.
A miséria daquele homem despertou, em mim, um senso crítico em relação a muitas coisas, passei a enxergar a vida por uma nova perspectiva. A alienação parece cada vez mais distante, não estou mais sozinho no mundo. O meu caminho que era de solidão, está repleto de pessoas jogadas nos pontos de ônibus, nas ruas misturadas aos cães, dormindo nas estações. Agora pergunto-lhes : Por que eu posso dormir em uma cama, em todo o conforto do mundo, e outros não ? Por que posso comer o que eu quero, na hora que quero, e outros morrerem de fome ? Parece que tem algo errado por aqui, não ?
Desculpem pelo texto, mas eu não estou com vontade de escrever. Não hoje.